Um Olhar Sobre “No Inferno”
Ou sobre a angústia da folha vazia
Uma análise de Caplan Neves
A substância da arte é a comunicabilidade. Que o ser “se liberte dessas paredes e ganhe a ilusão de estar livre.” Caso contrário perde-se a via e o criador. Elevar a angústia mais pessoal, ao mais profundamente partilhado, eis um empreendimento como nenhum outro. Mas que ponte inconcebível se estenderá entre a comunicabilidade e a expressão genuína de um mundo intransmissível? Palavras? “Palavras, palavras, palavras…” Herdamos as palavras e o modo de as ordenar. Como libertar-se desta “jaula da linguagem” de que nos falava Wittgenstein?
“No Inferno” exprime um sentimento único e profundamente pessoal, talvez o mais intimamente pessoal e inconfessável dos sentimentos experimentados por uma alma criadora. No entanto o que Arménio Vieira consegue expressar nesta obra é um sentimento que fala profundamente, tão profundamente que fere, que passeia com pés em brasa sobre as chagas abertas na angústia da criação.
Para aquele que jamais experimentou as atrozes e dilacerantes chamas deste tormento criativo, este é um livro impossível. Uma impossibilidade semiológica, porque pretende representar aquilo que não existe. Aquilo que se recusa a existir e oblitera a própria existência nessa recusa. É o nada que reduz toda a substância ao nada, inclusive a própria substância do nada. Só quem sustenta dentro de si este “inferno” pode reconhecer a expressão tácita deste sentimento. Doutro modo, apenas estrangeiros, ou melhor, turistas nessa angústia da folha vazia, qual o ateu numa experiência religiosa ou o religioso num mundo sem deuses. A angústia da folha vazia, eis o inferno. Ou então a angústia da substância inexistente. A angústia que emerge da inexistência daquilo que oblitera a própria existência em não existir. E o pior, ela não existe e se recusa a existir.
Observemos esta “amarga” citação do raptor do nosso herói Robinson: “Escrevo para suportar o mundo, que incessantemente se desintegra no nada (G. Kunert)”. Essa frase exprime em poucas palavras, o quão atrozmente angustiante pode ser uma folha vazia. Esta folha onde nada se escreveu e nada revela que possa ser escrito. Esta folha vazia, simplesmente porque “falta uma vocação de escritor”, ou vazia porque “o essencial já foi escrito”, como nos diz Arménio Vieira. Ou simplesmente vazia porque é no vazio onde tudo começa. Porque este romance que fere os olhos é função deste vazio, desta angústia da folha vazia.
"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.”, diz-nos Bernardo Soares no Livro do Desassossego, uma das recomendações do raptor de Robinson. “O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto." Sim, como diz Arménio Vieira em sua Nota Prévia “cultivemos o nosso jardim”. Cultivemos o nosso jardim porque é o único jardim onde poderemos jamais penetrar, não importa o quão constringente for a nossa “sobrecarga mental de informações livrescas”. O “nosso jardim” deve valer por si mesmo. Não para provar alguma coisa, não para se ser “original”, nem sequer para se libertar. Ela surge naturalmente no seio e para além daquilo que percebemos e sentimos. É um reflexo natural daquilo que nós somos e, neste sentido, único e irrepetível.
Como nos diz Pessoa pela voz de Soares, o que se confessa não tem importância, porque nada tem importância. Pelo menos, não num circuito fechado sobre si próprio, não numa ilha, não numa casa revestida de paredes de aço sem nenhuma presença de vida para além de si próprio (nem sequer ratos e parasitas); não num inferno onde o tempo não existe.
Nesta ilha fechada o que se confessa não tem importância porque não se pretende comunicar. O que se exprime não tende à um objectivo e nem reporta à um objectivo: “Quem é que ele desejava ver? Ninguém. De quem ou de que lugar podia ele sentir saudades? De ninguém, de nada”. Robinson é um ser vazio e sem memória mas que conserva todas as suas faculdades cognitivas e reflexivas. Mas eis um trágico paradoxo: ele “é capaz de observar, analisar, apreender e chegar a conclusões”, mas só o pode fazer num plano estritamente abstracto, porque falta substancialidade e realidade à aquilo que observa e analisa. É um mundo fechado de imagens e fantasmas, um mundo intemporal, um mundo onde em tudo o que se move, se percebe a irrealidade, a ausência de sentido de toda a actividade. “O homem não é nada” diz-nos Robinson declamando Tzara à uma plateia imaginária, “Medida pela escala da eternidade, todas a acção é vã”.
O fechamento conduz necessariamente à ruptura, a fragmentação, ao caos. Um caos que nasce da própria ausência da acção, da imobilidade. Nada se move num universo fechado tudo é frio e morto, o próprio tempo morreu. Se não há tempo não há progresso. Tudo é um eterno instante. Eis porque Robinson não consegue escrever o romance que lhe fora proposto como condição para a sua liberdade: ele não o pode fazer. Eis porque ele teimava em escrever histórias curtas: Se a vida é um caos, o romance é uma impossibilidade. Se o tempo é um eterno instante, ou um conjunto de eternos instantes, mais vale escrever textos curtos, o mais curto quanto possível, de preferência, poesia.
Mas o caos que encontramos nas páginas de “No Inferno” tem outro sentido. O seu objecto não é o mundo ou a existência, mas a própria escrita. Ela não se relaciona com o personagem, mas com o escritor. O objectivo do caos é expresso desinibidamente.
“Não sei onde estou, nem tenho a certeza de ser gente ou animal ou coisa.”, diz Robinson após, convicto do seu fracasso, atirar ao cesto de papeis o seu primeiro texto, “Estranho ao mundo, indiferente à vida, perdido nalgum ponto do universo, prisioneiro por dentro e por fora, porventura louco, ou talvez nem isso. Sem substancia sem forma, nem atributos. Em suma não existo, nem hipótese sou de coisa alguma”. Mas ao terminar este lindo e profundo monólogo, somos logo esclarecidos que não se trata exactamente da expressão do sentimento da sua condição no mundo, mas provavelmente da “reminiscência de algo que tivesse lido há muito tempo”. Não se trata aqui de um problema existencial, mas simplesmente de um problema relacionado a produção literária.
O absurdo não se relaciona com a existência em si, mas com o acto de escrever. Ele não tenta disfarçar o absurdo, ou pressupor que exista algo transcendental por trás deste absurdo, ou que o absurdo do que é relatado seja uma descrição nua e crua do mundo ou da vida real. O narrador tem consciência do absurdo daquilo que narra. Ele expressa-o claramente logo nas páginas iniciais, dizendo “Mas onde é que há lógica na história que estamos ouvindo?” e dá-nos depois uma esperança, “Haverá uma, certamente que há, mas não nos compete achá-la agora”. Mas ao aproximar-se do fim volta a esclarecer-nos que “ [esta ficção] é maluca, não tem pés nem cabeça.” E aconselha-nos à fechar o livro, a não ser que estejamos “vacinados” contra o absurdo.
Qual é então o sentido deste absurdo? Ele pretende calar-se por escrito. Mas este “calar-se” em Arménio Vieira não se trata da clássica literatura do silêncio, longe disto. Aliás está claro o que ele pensa do silêncio: “[…] o silêncio é uma coisa que sempre moeu o juízo daqueles que tentaram convertê-la em coisas que não fossem ela mesma, isto é, a palavra silêncio.” Mais a frente diz-nos: “Semelhante ao nada, o silêncio é apenas um lapso de tempo preenchido por uma coisa que deixou de ser.”
Entramos aqui num impasse. Ele não pretende dizer nada, ele quer apenas calar-se, mas muito menos pretende uma tradução do silêncio. Ele pretende situar-se num espaço entre o calar-se e o recusar do silêncio, então ele cita. Ele cita porque não tem nada para dizer. Repete de cor e salteado o essencial da literatura ocidental (e não só), porque acredita que o essencial já foi dito. Só lhe resta venerar o que já foi feito. Eis o sentido do “pavor místico” que invade Robinson quando lhe ocorre usar os livros caso lhe faltasse papel higiénico: a único coisa que faz sentido preencher a sua folha vazia, são citações.
Então ele mergulha-nos propositadamente num universo absurdo do qual só a literatura escapa. Porque ele já não tem olhos, ou não acredita nos seus olhos. Ele obliterou o seu olhar na suposição que o essencial já foi visto. Só lhe resta olhar o mundo com os olhos daqueles que viram já o mundo. Eis o sentido deste angustiante vazio que povoa as folhas de “No Inferno”: “Nas estantes da sua memória só havia espaço para livros, apenas isso”.
“Só escreve quem lê.” diz o raptor de Robinson. Ele é só leituras. Está constringido por essa “sobrecarga mental de informações livrescas”. Quando se observa com olhos alheios traz-se também o olhar alheio e consequentemente um mundo alheio a nós. A escrita nasce, repito, naturalmente, no seio e para além daquilo que percebemos e sentimos. Como escrever se o olhar não nos pertence, se não existe uma percepção genuína, um sentimento genuíno?
O método está no entanto achado. Um eunuco (perceba-se, um ser castrado e incapaz de procriar) pergunta a Robinson se pode dizer um poema. “Um poeta eunuco, força! Recita o poema.” Incentiva-o Robinson. Mas quando o eunuco o faz ele apercebe-se “Conheço, é um verso irlandês, mas atenção: acrescentaste-lhe umas palavras.” “Fiz mal?”, pergunta o eunuco. “Fizeste muito bem.”, diz Robinson. Eis que somos esclarecidos. Talvez demasiadamente esclarecidos. Não há nada a dizer se o olhar não nos pertence. Só resta papaguear citações e acrescentar-lhe algumas palavras.
Todo o enredo deste… bom, chamemos-lhe romance, é o próprio acto de criação de si mesmo. “Desde o primeiro livro, Poemas, de 1981, passando por O Eleito do Sol, de 1989, até esse seu No Inferno, Arménio Vieira transita por dentro da escrita.”, diz-nos Clara Seabra. Mas há mais. “No Inferno” transita por dentro de si próprio. Um movimento paradoxal de uma obra que descreve o seu próprio emergir, sendo a substância de si próprio.
Os paralelismos são óbvios. O personagem e o autor encontram no mesmo “assado”: o de escrever um romance quando não há nada para escrever. Quer o autor quer a personagem limitam-se à um amontoar de textos dispersos e de citações dispersas. Estão ambos constringidos pela sua “sobrecarga mental de informações livrescas”. E, por fim, como se liberta o personagem? “Tropeçando, rolou pelos degraus abaixo e zás! Encontrou-se no País das Maravilhas […]”. E como termina a obra? “Eis que começa o dia a despontar. Interrompo aqui a minha história”. O dia desponta, ele toma o banho, veste-se e como o resto do rebanho, penetra pelo País das Maravilhas, onde as pessoas deslocam apressadas, sem saberem que “é preferível a gente retirar-se para um lugar onde haja flores (sobretudo rosas), beber vinho e… morrer.”
Donde vem este pessimismo de criador, supondo que nos dias que correm é necessário um razão para se ser pessimista? Vejamos, a folha vazia precisa ser preenchida, mas estamos constringidos pela suposição de que o essencial já foi escrito. “Que fazer então? Continuar a escrever romances, fazendo de conta que ninguém os escreveu antes de nós?”, indaga-se Arménio Vieira. Chegamos a pensar que ele pretende fazer humor. Só não desatamos as gargalhadas porque está claro o que realmente é. Mostra-nos a tocante e abatida feição de um grande escritor que qual Édipo, arrancou os próprios olhos. Mas como teve ele coragem de ferir assim os seus olhos? Que divindade a isso lhe levou? Perguntamos nós, corifeus dessa angústia que nos é alheia.
Pois bem, imaginemos-lhe qual um profeta que se guia por um enorme livro de profecias no fundo de um poço, onde todos os profetas, seus antepassados, foram beber a sua inspiração. Chegado demasiado tarde, tudo já fora anunciado, já não existem mais revelações a serem feitas. Com o coração apertado, procura em vão entre as paginas desse livro decrépito uma palavra que ainda ninguém prenunciou. Perseguido pelo desejo de revelar uma boa nova, mas consciente de que tudo já foi dito. Só lhe resta arrancar os próprios olhos e resignar-se a olhar o mundo com os olhos dos profetas mortos.
Mas podemos ainda indagar como terá surgido em Arménio Vieira essa estranha cadeia de raciocínio, como terá o olhar que gerou “O Eleito do Sol”, acabado por declarar a inutilidade do seu olhar.
Antes de mais é importante ressaltar que, como diz Clara Seabra, ele é um escritor “inconcebível fora de uma literatura-metalinguagem. Significa isto que o seu objecto não é a expressão de emoções humanas em si, mas a própria expressão, ou melhor, o próprio acto de exprimir. Assim, ele se exclui do contacto directo com as emoções e explora as sombras dessas emoções. Isto é particularmente visível nesta obra.
De resto, porque Robinson assassina reiteradamente Romeu e Julieta. Robinson ama Julieta mas Julieta não ama Robinson. “Porque é que os matou?”, perguntou Clint. “Porque é o meu destino”, respondeu Robinson. Pois! Robinson não foi feito para o amor. Ninguém pode amar preso dentro de uma ilha e sem memória. Mas não é o amor que ele busca, assim como não é a Julieta que ele ama. O amor não existe, assim como Julieta não existe.
“Aquilo a que uma longa tradição – mais literária do que reflexiva – se habituou a traduzir pela palavra amor, talvez não passe de uma mitificação”. Ou então, “Se Dante, em vez de um modelo platónico, tivesse reflectido sobre a mulher que Beatriz realmente era, talvez não lhe houvesse dedicado um só dos seus pensamentos, quanto mais um dos maiores poemas escritos por uma alma apaixonada.
A literatura-metalinguagem move-se por entre as sombras do sentir. E as sombras são fixas tal como o olho que os observa fixamente. É uma experiência de imobilidade. Um ser sem memória de objectos e emoções reais não compreende o tempo. Não compreende que nada está fixo, nem o objecto nem o observador, que o acto de observar é um acto de liberdade, de selecção. Que o olhar não existe a priori, que cada um deverá construir o seu próprio olhar. Pois o vazio surge porque cessamos de olhar com os nossos próprios olhos. Que quando olhamos com os nossos próprios olhos, percebemos como o nosso olhar é único e irrepetível, assim como o é a sua expressão. Que está tudo por dizer, porque tudo espera ser visto.
Onde reside esta negação do olhar? Será que foi a sua “literatura-metalinguagem” que fechada sobre si mesma, sem injecção de emoções reais já não podia suportar o próprio vácuo, o olhar cansado de olhar para o nada e resolveu declarar a inutilidade do olhar? Talvez a questão seja muito mais simples, até mesmo porquê, existe emoção real na “literatura-metalinguagem”. Existe efectivamente uma emoção da própria escrita. O que mudou então?
“[…] começara a viajar pelos livros, os quais, nessa fase, lia por prazer, pelo que se o acto de ler é um pecado, eu andava mais próximo da gula que da vaidade”, pode-se ler algures. O mesmo acontece com a escrita. A escrita pode igualmente nascer da “gula” ou da “vaidade”. A escrita pela “gula” tem como único objectivo o prazer. É neste sentido um reflexo natural do olhar que criamos para captar um mundo que se move e se realiza na medida desse mesmo olhar. O que “desconsola”, não é a suposição de que o “essencial já foi escrito. O que “desconsola” é a perda do olhar. O vazio não está nas coisas, mas em olhar as coisas com olhos de outrem.
Nada mais tenho a dizer de Arménio Vieira para além de que é um dos maiores escritores cabo-verdianos. Quanto ao “No Inferno”, talvez fosse um problema estrutural da própria obra. Como um ser que só vive respirando um veneno que inevitavelmente o matará. A angústia da folha vazia, sendo a força motriz desta obra, foi o que o conduziu a sua perdição. De resto, o papaguear de citações e o esforço propositado de nos emergir num absurdo tendencioso, não escondeu o génio de Arménio Vieira que esperemos, recupere o olhar e a voz. Porque quando recuperamos o olhar deparamos com um horizonte infinito de espaços vazios a nossa frente, a espera que lhe revelemos o sentido.
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