Mensagem Dia Mundial do Teatro II

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Saúdo toda a gente do Teatro. Essa gente esquecida nos momentos bons e recordada nos maus. Essa mesma gente esquecida quando estão em maus momentos e solicitada quando em seus melhores momentos. Essa mesma gente de circunstâncias para a curta visão e de perseverança para os de visão profunda. Essa gente que trabalha com as dificuldades sempre a favor e que choram para fazer rir e riem para não chorarem.

Os dias de qualquer coisa devem servir para qualquer coisa. Porque nem todas as coisas têm um dia, embora hoje haja um dia para quase todas as coisas, o que quer dizer que todas as coisas são importantes. Deste modo, se o Teatro não fosse importante seria uma coisa qualquer. E se é importante, isso já é qualquer coisa, nesses tempos e nesta terra em que tudo tende a perder importância se não for político ou industrial. Que ainda haja teatro em Cabo Verde é um sinal de que são uns sãos loucos que fazem este país. Mas para que haja sempre Teatro em Cabo Verde é preciso desconfiar dos doutos de ocasião, esse que fazem teatro onde não devem. As ajudas festivalescas e as palmadas em cima do chumaço não constituem políticas nem visão estética. Nem uns devem pensar que isso é suficiente, nem outros têm com que agradecer. Deve ser um imperativo de Estado o investimento no Teatro, que deve constituir a sétima arte nacional, até que o próprio teatro, prenhe como está, gere nas suas entranhas um cinema latente. Mas tendo em conta as experiências do Mundo e os recursos de que dispomos, o cinema será sempre uma visita, e o teatro, um severo inquilino.

Saúdo novamente em nome dos ausentes a todos os presentes no teatro, dos figurinistas aos actores, dos directores aos iluminadores, dos cenógrafos aos músicos, dos dramaturgos aos contra-regras, dos anotadores às bilheteiras, do público inocente ao critico aprumado, da criançada inteligente aos mecenas reticentes.

E rogo pragas para que Março seja um mês gago, e fique truncado no dia 27 para a fortuna dos anos vindouros.

Mário Lúcio

27 de Março de 2009


Mensagem do Dia Mundial do Teatro I

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Somos todos actores

Todas as sociedades humanas são espectaculares no seu quotidiano, e produzem espectáculos em momentos especiais. São espectaculares como forma de organização social, e produzem espectáculos como este que vocês vieram ver.

Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de ideias e paixões, tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro!

Não só casamentos e funerais são espectáculos, mas também os rituais quotidianos que, por sua familiaridade, não nos chegam à consciência. Não só pompas, mas também o café da manhã e os bons-dias, tímidos namoros e grandes conflitos passionais, uma sessão do Senado ou uma reunião diplomática – tudo é teatro.

Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espectáculos da vida diária onde os actores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida quotidiana.

Em Setembro do ano passado fomos surpreendidos por uma revelação teatral: nós, que pensávamos viver num mundo seguro apesar das guerras, genocídios, hecatombes e torturas que aconteciam, sim, mas longe de nós em países distantes e selvagens, nós vivíamos seguros com nosso dinheiro guardado num banco respeitável ou nas mãos de um honesto corrector da Bolsa - nós fomos informados de que esse dinheiro não existia, era virtual, feia ficção de alguns economistas que não eram ficção, nem eram seguros, nem respeitáveis. Tudo não passava de mau teatro com triste enredo, onde poucos ganhavam muito e muitos perdiam tudo. Políticos dos países ricos fecharam-se em reuniões secretas e de lá saíram com soluções mágicas. Nós, vítimas de suas decisões, continuamos espectadores sentados na última fila das galerias.

Vinte anos atrás, eu dirigi Fedra de Racine, no Rio de Janeiro. O cenário era pobre; no chão, peles de vaca; em volta, bambus. Antes de começar o espectáculo, eu dizia aos meus actores: “Agora acabou a ficção que fazemos no dia-a-dia. Quando cruzarem esses bambus, lá no palco, nenhum de vocês tem o direito de mentir. Teatro é a Verdade Escondida”.

Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, géneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida.

Assistam ao espectáculo que vai começar; depois, em suas casas com seus amigos, façam suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos. Teatro não pode ser apenas um evento - é forma de vida!

Actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!

Augusto Boal


27 de Março de 2009



Em Cartaz

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A ideia de encenar No Inferno

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Desde a primeira leitura da obra que a vontade de partir para esta aventura foi uma realidade. Por um lado, estamos a falar de uma figura maior da nossa literatura, um dos maiores poetas deste país que, possivelmente, já mereceria um outro tipo de visibilidade, condizente com o seu talento; por outro, o romance “No Inferno”, sendo uma obra fragmentária, difícil e que exige do leitor alguma cultura geral, principalmente no domínio da literatura, é ao mesmo tempo, extremamente teatral porque muitas das suas páginas estão ocupadas com diálogos muito bem elaborados, demonstrando o pleno domínio do escritor da técnica dramatúrgica, onde as falas dos personagens são quase sempre lacónicas, corrosivas, inquietantes, ou seja, teatrais.

Ora, o livro foi lançado em 1999. Só passados dez anos pegamos nele para o adaptar. A principal razão terá a ver com a complexidade estrutural da mesma, a sua dimensão intelectual e mesmo histórica, que nos fez concluir que para pegar neste texto e concretizar a sua transfusão cénica, teríamos que estar preparados. A exigência desta criação é enorme a todos os títulos: por um lado, a adaptação dramatúrgica foi resultado dum estudo e análise do romance no seu todo, para que no palco se pudesse criar uma situação “legível”, embora sujeita a múltiplas leituras; por outro, quer no que diz respeito à encenação, quer no que diz respeito ao trabalho dos actores, também essa experiência, ou melhor, maturidade, era condição sina qua non para avançarmos. Dito de forma directa, “No Inferno” é apenas adaptado agora porque só agora nos sentimentos preparados para concretizar tamanho atrevimento.

No Inferno: a encenação

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A angústia da criação. Não há maior angústia, assim como não há dor como aquela que resulta do nascimento de um novo ser humano, e sobre isso são as mulheres as melhores testemunhas. Não há parto sem dor. E com a angústia e a dor chegam os fantasmas, as vozes, as imagens e sobretudo, o peso do passado, as referências de tudo aquilo que já vimos e lemos, a memória como inimigo do novo, a balança empanturrada com todas as criações anteriores da Humanidade. Que posso eu escrever, pintar, encenar, compor, fotografar, esculpir se (quase) tudo já foi experimentado? Como posso eu preencher a folha em branco, a tela vazia ou o palco despojado de objectos, de movimentos, de vida? Sem procurar respostas, esta peça vive do que se ouve e vê – como qualquer peça de teatro, em suma. Mas quase tudo o que se ouve e muito do que se vê, tem uma forte carga simbólica, no cenário, no registo interpretativo dos actores, na música e, claro, no texto. As asas, os cacifos, o leito, as sombras, os ossos, os livros gigantes que imanam luz, as diferentes formas que assumem os fantasmas que povoam o dia-a-dia do poeta, são tudo símbolos de um estado de espírito impossível de descrever de forma racional e objectiva, porque neste Inferno da criação, o caos é um ponto de partida e será, provavelmente, o ponto de chegada. Somos todos joguetes do destino. Não há como arrumar o caos, ordená-lo sem acabar com a sua própria natureza. Então o melhor é, como diz o poeta no final, “a gente retirar-se para um lugar onde haja flores – sobretudo rosas – beber vinho e morrer.”


João Branco


No Inferno: a equipa

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Este espectáculo só teria sido possível com a conjugação de uma série de factores. Em primeiro lugar, como sempre deve acontecer no teatro, estão os actores. São eles que dão corpo, energia, suor e vida aos personagens. São eles a alma da arte cénica. São eles que colocam as suas cabeças na guilhotina a cada apresentação. E no caso particular de “No Inferno” a existência de actores disponíveis, corajosos, inteligentes, talentosos e experientes foi fundamental e fez com que a angústia da criação se transformasse no prazer redobrado da partilha colectiva, do respeito e admiração mútuas, do florescer de uma energia que foram motor e alimento desta montagem cénica. Aqui e agora, quero salientar o trabalho de Arlindo Rocha, Elísio Leite, Fonseca Soares e Manuel Estêvão. Quatro actores do melhor que existe nos palcos de Cabo Verde, juntos, compondo uma partitura cénica que dá resposta às exigências do texto original e ao génio do seu autor, o poeta Arménio Vieira. A este temos que agradecer a disponibilidade e a força dada ao longo de todo este processo, e será para nós uma suprema honra e enorme satisfação poder tê-lo sentado na plateia, para apreciar, de forma crítica, o resultado final. Do resto da equipa, gostaríamos de salientar a colaboração de Carla Correia na cenografia, os figurinos de Elisabete Gonçalves e a música original de Caplan Neves, um jovem com raro talento para a escrita e composição que não hesitou em responder ao desafio de se juntar nesta empreitada. O Edson Gomes com um desenho de luz competente, completa a equipa técnica e artística desta peça, que é a 43ª produção teatral do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português - IC.

Queremos que acima de tudo esta peça possa homenagear o autor do romance que a inspirou. Esse o primeiro e grande objectivo. Que possa ser digna da obra e do génio criativo de Arménio Vieira e que no palco se possa reconhecer algo do seu código genético enquanto poeta e escritor.

Depois de tantas peças, de tantos anos, devemos proclamar também que o teatro está morto? Não nos preocupemos com isso, por agora. Sigamos o sábio conselho do poeta que nos diz que mesmo que a suposição de que o essencial já foi escrito nos desconsole, cultivemos o nosso jardim. Deixemos o nosso espírito vaguear, livre, por alguns instantes em cada dia, para que quando a morte nos venha bater à porta, não lamentemos a nossa condição de escravos de um tempo que já passou.


João Branco


Imagem: pintura de Klee

No Inferno: o texto

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Exibe-se aqui, o mais intimamente pessoal e inconfessável dos sentimentos experimentados por uma alma criadora. Exibe-se aqui, uma sombria jornada de pés flamejantes sobre as chagas abertas na angústia da criação. Exibe-se aqui uma impossibilidade semiológica, o anseio de representar o inexistente, aquilo que se recusa a existir e oblitera a própria existência nessa recusa. O nada que reduz toda a substância ao nada, inclusive a própria substância do nada. Exibe-se aqui, a angústia da folha vazia, a angústia da substância inexistente. A angústia que emerge da inexistência daquilo que oblitera a própria existência em não existir.

Está o poeta frente a folha vazia. Esta folha onde nada se escreveu e nada revela que possa ser escrito. Esta folha vazia, simplesmente porque “falta uma vocação de escritor”, ou vazia porque “o essencial já foi escrito”, ou simplesmente vazia porque é no vazio onde tudo começa.

Está o poeta num circuito fechado sobre si próprio, numa ilha perdida num recanto de si, numa casa revestida de paredes de aço sem nenhuma presença de vida para além de si próprio (nem sequer ratos e parasitas); num inferno onde o tempo não existe.

Está o poeta ante a vanidade da acção. O que exprime não tende a um objectivo e nem reporta a um objectivo. Os seus olhos não pretendem outra face além do rosto mórbido que habita o espelho. O seu coração não pretende outro coração ou outro lugar para além desse lugar perdido e deste coração encarcerado dentro da caixa inexorável em seu peito. Não pretende ninguém, nada.

Move-se o poeta vazio e sem memória. Move-se o poeta num mundo fechado de imagens e fantasmas, um mundo intemporal, um mundo onde em tudo o que se move, se percebe a irrealidade, a ausência de sentido de toda a actividade.

Está o poeta encarcerado. O fechamento que conduz à ruptura, a fragmentação, ao caos. O caos que nasce da própria ausência da acção, da imobilidade. Nada se move nesse universo fechado. Tudo é frio e morto, o próprio tempo morreu. Tudo é o eterno instante. Tudo são sombras, tudo é vão. Tudo é angústia, tudo é hilariante, tudo é trágico, tudo é cómico, tudo é nada (ou nada é tudo).

Move-se (?) o poeta no inferno…

Caplan Neves



Imagem: pintura de Magritte



No Inferno: os cartazes

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No Inferno” exprime um sentimento único e profundamente pessoal, talvez o mais intimamente pessoal e inconfessável dos sentimentos experimentados por uma alma criadora. No entanto o que Arménio Vieira consegue expressar nesta obra é um sentimento que fala profundamente, tão profundamente que fere, que passeia com pés em brasa sobre as chagas abertas na angústia da criação.




Estreia dia 28 de Março!



43ª Produção do Grupo de Teatro do CCP - IC


Cartaz Março

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Peças em Imagem: Gato Malhado na Craquinha

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Imagens da apresentação da peça "O Gato Malhado e Andorinha Sinhá" na Ribeira de Craquinha, no Mindelo, no passado dia 01 de Março de 2009.













Fotografias de Anselmo Fortes

Manifesto Teatral

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Manifesto Teatral

Vamos entrar no mês de Março, que em Cabo Verde tem sido desde 1999, o “Mês do Teatro”, pelo facto de no dia 27 de Março ser Dia Mundial do Teatro, e de durante todo o mês a Associação Mindelact e grupos de teatro um pouco por todo o arquipélago promoverem actividades ligadas às artes cénicas, com destaque, naturalmente, para a apresentação de peças de teatro. Por me ter sido solicitado que abordasse esta temática decidi, depois de participar em mais de 50 peças enquanto encenador, actor, cenógrafo ou dramaturgo, publicar o meu Manifesto Teatral. A forma como abordo a criação artística nesta área e a experiência adquirida ao longo de cerca de 20 anos de carreira permite-me que torne público este texto, mais do que uma manifestação de intenções, um espelho da forma como venho encarando a actividade profissional nesta área, parte vital da minha vida.

1. É fundamental que haja focos, pontos de partida para a criação, sons que permanentemente nos avisam e ajudam a não cair em soluções espontâneas que são rasteiras sempre presentes, porque muitas vezes a nossa mente tende a escolher, até pela forma como vem sendo moldada pela cultura da globalização, os caminhos mais fáceis. Este é um manifesto que se baseia em alguns conceitos fundamentais, a partir dos quais procuro nortear a criação no domínio das artes cénicas: Criatividade, Coerência, Concepção, Estudo, Exigência, Experimentação, Humildade, Trabalho e Partilha.

2. Nada acontece por acaso. No teatro, a arte da transparência, menos ainda. Para se conseguir um bom resultado é fundamental pesquisar, preparar, definir e fundamentalmente trabalhar. Trabalhar muito. Um espectáculo de teatro vive do momento, da sequência dos instantes, da procura da perfeição em cada segundo (que nunca é alcançada). A diferença entre um bom e um mau espectáculo de teatro está relacionada, na maior parte dos casos, com a maior ou menor atenção que damos aos pormenores. Peter Brook, o mais importante encenador do século XX, escreveu: “não há segredos”, e é verdade. O trabalho de um encenador é o mesmo do de um artesão, onde não há lugar para falsas mistificações nem para pretensos métodos mágicos. Não há teatro feito por geração espontânea. Fazer bom teatro dá muito trabalho. Exige enormes sacrifícios. Pede tempo e disponibilidade. [Trabalho]

3. O maior perigo do sucesso e da aceitação do público, e isso é claro em quase todas as áreas, é a acomodação. Como se descobríssemos uma fórmula, que repetimos até à exaustão, até porque se já resultou uma vez, vai certamente resultar noutras. Nada mais errado. A acomodação leva ao desleixo, o desleixo ao facilitismo e se há algo que aprendi neste ofício é que o público não é estúpido, antes pelo contrário. Hoje, exige-se ao processo de criação uma velocidade que corresponda às exigências da modernidade e essa é a sua maior armadilha. O tempo passou a ser um luxo. A reflexão um bem de terceira necessidade. Daí a urgência de exigirmos de nós próprios cada vez mais e não nos deixarmos cair nas tentações do mercantilismo e do aplauso fácil. Tenhamos, pois, como meta primeira fazer melhor que a produção anterior. É um excelente princípio. [Exigência]

4. No teatro tudo é possível porque parte de uma matriz fantástica (e de certa forma angustiante) para o processo de criação: o espaço vazio. Para preencher este espaço vazio devemos utilizar a criatividade de forma a que possamos conceber uma peça onde seja possível estar sempre um passo à frente de quem o vê. Quero com isto dizer que a previsibilidade é o veneno mortal da arte cénica. Porque provoca o desinteresse, o tédio e com este o maior de todos os sintomas, os ruídos oriundos da plateia, paladinos do aborrecimento: tosse, papeis, telemóveis a tocar. E esta abordagem de que tudo é possível é também ela uma armadilha, porque denota uma possibilidade de anarquia absoluta. Não caiamos nisso, porque como se disse no ponto anterior, o rigor e a disciplina têm que estar sempre presentes e com estes a capacidade de surpreender, sempre e a qualquer momento. Que nome se dá a essa competência? Criatividade, simplesmente. [Criatividade]

5. Entre a necessidade de reflexão, de trabalho, de disciplina e a liberdade inerente ao “tudo é possível”, ao espaço vazio e ao acto de criação em si, há um campo vasto de possibilidades a experimentar. “Por isso não há receitas prontas. Permanecer muito tempo na profundidade pode tornar-se aborrecido. Permanecer muito tempo no superficial logo se torna banal. Permanecer muito tempo nas alturas pode ser intolerável. Temos que estar em movimento o tempo todo.” Este parágrafo da autoria de Brook define bem aquela que é uma das características mais genuínas da arte teatral: a experimentação. Agora que já passamos da época em que se chamava experimental a tudo e mais alguma coisa sem a mínima noção do que esse termo realmente significava, talvez lhe possamos dar o devido valor. Tentar ser melhor passa também por descobrir novos caminhos, novas estéticas, novas temáticas, novas abordagens, novas técnicas. [Experimentação]

6. Para que o teatro viva e conserve a sua frescura, deve constantemente arriscar-se, confrontar-se, aventurar-se em novos mundos e é por isso que experimentar é nesta arte tão vital como respirar. Diria mesmo que a experimentação é o reflexo respiratório da arte cénica, o que faz com que esta se renova permanentemente e combata aqueles que são os seus grandes inimigos: o tédio, o aborrecimento, a repetição de fórmulas gastas, a manutenção de um estado senil incompatível com o ser e fazer arte. Mas experimentar não é lançar a concepção criadora para um abismo sem retorno. Pressupõe um domínio de determinadas técnicas, um estudo prévio, uma preocupação em conhecer os antecedentes das linguagens que se pretendem explorar. Experimentar implica também conhecer, ir mais além, procurar profundidade numa época em que a ligeireza domina quase todos os parâmetros da nossa vida social e cultural contemporânea. [Estudo]

7. O teatro é um espelho multifacetado das diferentes realidades que o rodeiam, mas não é certamente espelho de si próprio. Uma peça de teatro é concebida para que alguém a veja. Sendo assim, vai ser sujeita a um escrutínio que não nos deve fazer reféns mas também não nos pode deixar completamente indiferentes senão algo deixa de fazer sentido. E sabendo que o público vai para o teatro para se emocionar, para fazer parte de uma aventura comum, isso obriga a uma contínua introspecção e escuta atenta da parte de quem faz. Auscultar os outros, talvez seja este o acto que melhor define a humildade artística, considerada aqui como uma espécie de grilo falante que nos avisa, em momentos precisos, que se calhar não somos assim tão geniais e que não nos devemos levar tão a sério. O facto de o teatro ser a arte da partilha por excelência faz com que quem nele esteja envolvido se obrigue a questionar. Não tenhamos, pois, a pretensão de que aquilo que fazemos é automaticamente interessante, nem reclamar que os outros é que são ignorantes quando não alcançamos o pretendido. É importante saber escutar os silêncios, as opiniões, as criticas, os elogios, os abandonos, os abraços. Assimilar e seguir em frente. [Humildade]

8. No teatro cabe (quase) tudo. A arte de representar, a arquitectura, as artes plásticas, a música, a moda, a óptica, o som, a luz, os cheiros. Daí também o perigo de se tornar uma amalgama sem sentido. Parece-me fundamental que num campo tão vasto como este haja a preocupação de saber combinar todos estes elementos de forma coerente. Saber jogar com os materiais, com as cores, com os tecidos, com os sons, com os registos dos actores e fazer do todo uma obra de arte que tenha, no mínimo, qualidade estética e clareza conceptual. Por isso o teatro é a arte dos detalhes. Isso obriga a uma atenção redobrada sobre todos os aspectos envolvidos e a uma capacidade de encarar a montagem de uma peça de teatro como um processo colectivo, com muitos criadores envolvidos. Para que funcione, é importante que todos caminhem num sentido definido, claro, concreto, resultado de um profundo debate e questionamento, é certo, mas cujo resultado final nos faça estar perante um quadro harmónico, pictórico, energético e humano coerente consigo próprio. [Coerência]

9. Finalmente dizer que se a partilha é o que faz do teatro aquilo que ele é, torna-se claro que “a base do ofício teatral consiste em estabelecer com o público, a partir de elementos muito concretos, uma relação que funcione”, como escreveu Brook. Isto não implica que se tenha que fazer concepções, como tantas vezes se quer fazer querer. Mas tem que haver respeito. O público reconhece, antes de tudo, a qualidade. E premeia-a, sem contemplações. Claro que há plateias mais difíceis e outras mais dóceis, mas nem as primeiras tem que ser encaradas como inimigas nem as segundas como condescendentes. O ideal é conseguir uma plateia que goste realmente de teatro. Essa é uma bênção, porque resulta numa troca energética entre um grupo de pessoas que vive uma convenção – a convenção teatral - num mesmo comprimento de onda. Por isso o confronto da obra cénica com o seu receptor final é o culminar de um longo, doloroso, paciente e complexo processo criativo, cujo resultado é sempre imprevisível mas quase sempre justo e reflexo do investimento pessoal e colectivo nele depositado. [Partilha]

10. Quanto ao resto, é como o próprio teatro, nasce e morre. Tudo é efémero. É importante que não nos levemos demasiado a sério e que este manifesto possa ser lido como um roteiro de uma viagem, num mundo que permite múltiplos itinerários a tantos outros destinos que não tem que adoptar nada do que aqui é defendido. É provável que eu próprio, daqui a alguns anos, leia este texto e que, como quem lê uma carta de amor que se escreveu na adolescência, sorria e, envergonhado, o arrume sem contemplações no baú das memórias mais longínquas.


João Branco
Mindelo, Março de 2009