No Inferno: a encenação

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A angústia da criação. Não há maior angústia, assim como não há dor como aquela que resulta do nascimento de um novo ser humano, e sobre isso são as mulheres as melhores testemunhas. Não há parto sem dor. E com a angústia e a dor chegam os fantasmas, as vozes, as imagens e sobretudo, o peso do passado, as referências de tudo aquilo que já vimos e lemos, a memória como inimigo do novo, a balança empanturrada com todas as criações anteriores da Humanidade. Que posso eu escrever, pintar, encenar, compor, fotografar, esculpir se (quase) tudo já foi experimentado? Como posso eu preencher a folha em branco, a tela vazia ou o palco despojado de objectos, de movimentos, de vida? Sem procurar respostas, esta peça vive do que se ouve e vê – como qualquer peça de teatro, em suma. Mas quase tudo o que se ouve e muito do que se vê, tem uma forte carga simbólica, no cenário, no registo interpretativo dos actores, na música e, claro, no texto. As asas, os cacifos, o leito, as sombras, os ossos, os livros gigantes que imanam luz, as diferentes formas que assumem os fantasmas que povoam o dia-a-dia do poeta, são tudo símbolos de um estado de espírito impossível de descrever de forma racional e objectiva, porque neste Inferno da criação, o caos é um ponto de partida e será, provavelmente, o ponto de chegada. Somos todos joguetes do destino. Não há como arrumar o caos, ordená-lo sem acabar com a sua própria natureza. Então o melhor é, como diz o poeta no final, “a gente retirar-se para um lugar onde haja flores – sobretudo rosas – beber vinho e morrer.”


João Branco


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