Recordando Nha Bernarda

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Em 1997, estreia uma peça que foi até hoje um dos maiores êxitos de público de todo o nosso historial. "A Casa de Nha Bernarda", criolização da peça de Garcia Lorca, foi apresentada durante seis dias, sempre com lotação esgotada e só não foi mais porque a actriz convidada, Guida Maria, teve que regressar ao seu país.

Recordemos aqui quem fez parte desse memorável projecto teatral.

A Casa de Nha Bernarda

Ficha Artística
Encenação
João Branco
Adaptação Dramatúrgica
Colectiva
(Coordenação na tradução para o crioulo: Maria da Luz Faria)
Cenografia
João Branco e Paulo Miranda
Figurinos
Anilda Rafael
Iluminação
César Fortes e Flávio Leite
Som
Anselmo Fortes

Actrizes
Maria da Luz Faria
Gabriela Graça
Elisabete Gonçalves
Benvinda Francês
Carla Sequeira
Cláudia Lima
Joana Évora
Anilda Rafael
Zenaida Alfama
Helga Melício
Telma Veríssimo
Dijemira Margarete

Guida Maria: Actriz convidada

Apresentação

Dias 14, 15, 16, 20, 21 e 22 de Novembro de 1997, no Centro Cultural do Mindelo

Não se Ouve Nada Além do Pranto
Texto inserido no programa da peça «A Casa de Nha Bernarda»


O momento mais difícil quando se encena um espectáculo de teatro é este: escrever um texto introdutório, geralmente incluso no programa do referido espectáculo – o que é o caso – para tentar descrever um pouco do que foi o acto criativo e cujo resultado final está a ser posto à disposição dos olhares críticos de quem assiste.

O Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo teve desta feita um desafio de grande risco, quer pelo autor em causa, quer pela peça escolhida (e segundo informações que nos foram fornecidas, já tinha sido posta em cena nos anos 60 no Mindelo, o que aumenta ainda mais a nossa responsabilidade). Encenar “A Casa de Bernarda Alba” no contexto que vem caracterizando o nosso trabalho, não foi tarefa fácil. Era necessária, do nosso ponto de vista, uma adaptação. O texto original sofreu duas traduções: uma do castelhano para o português, (já estava contemplada na obra a que tivemos acesso), e uma outra do português para o crioulo, no que concerne à maioria das personagens. Essa tradução não foi somente literária, mas a própria essência da peça, pesada, convencional, lenta e introspectiva, sofreu uma transformação no mínimo interessante. A tradução para o crioulo tornou o texto mais aberto, mais musical, mais próximo da realidade local, um pouco mais moderno. A ambiguidade, tal como na obra original, está presente, mas é nossa convicção que a tradução feita, num trabalho que procurámos fosse o mais rigoroso possível, deu ao ambiente geral da peça um toque de ironia típico da cidade do Mindelo e dos seus cidadãos. De um primitivo ambiente rural passamos para um ambiente urbano, numa época em que o Mindelo registrava grandes movimentações, ampliando o seu cunho de cidade cosmopolita.

Sendo o teatro uma arte em movimento não faria sentido, do nosso ponto de vista, encenar a “A Casa de Bernarda Alba” da mesma forma como esta foi feita nas inúmeras adaptações postas em cena em Portugal e no resto do mundo. O Teatro é assim mais uma vez veículo de transformação e a obra que agora é apresentada já não é a que nasceu do punho do dramaturgo, como não o são nenhuma das inúmeras adaptações referidas anteriormente. “A Casa de Nha Bernarda” não deixa de ser uma história que conta o luto imposto por uma mãe severa às suas filhas depois da morte do marido, com o preto, o pranto, a escuridão e a falta de perspectiva de vida sempre presente. “A Casa de Nha Bernarda” não deixa de ser uma sequência de jogos e meias verdades, de sofrimentos, de lutas, de suspiros, de ânsia pela presença masculina, sempre ausente mas sempre tão presente. Na peça, como no dia a dia de muitas mulheres cabo-verdianas, o homem não está presente, vagueia, dentro de si ou por esse mundo fora em busca de um futuro melhor para si e para os seus. A experiência da solidão feminina é, foi e será vivida por muitas mulheres crioulas. Na peça, como na actualidade, em qualquer parte do planeta, as convenções impostas pela sociedade, sobrepõem-se muitas vezes à felicidade das pessoas, e nesse campo são as mulheres que mais vezes experimentam o amargo sabor da indiferença e da hipocrisia social. Muitas delas, ainda hoje, só na morte encontram a libertação tão desejada, e essa é uma realidade universal e que faz da obra de Lorca um monumento da dramaturgia contemporânea.

Esta é uma peça que tem outra característica muito especial e que mais uma vez vem ao encontro daquilo que sempre temos defendido como um caminho profícuo e enriquecedor. O caminho da troca de experiências, do confronto de culturas, da fusão de estados de espírito, do conhecimento de diferentes métodos de trabalho. O projecto “A Casa de Nha Bernarda” está profundamente ligado à coragem e ao talento da actriz portuguesa Guida Maria, que não hesitou um momento para aceitar o nosso desafio de encarnar uma Bernarda do Mindelo. Não deve ter sido nada fácil para ela esta experiência mas de desafios fáceis está o mundo cheio e não vale a pena perdermos muito tempo com eles. A Guida Maria não o fez, agarrou-se a este projecto com a sua imensa força, aceitou sair do ambiente extremamente profissional e estruturado do Teatro Nacional D. Maria II, para vir ensaiar numa biblioteca, dirigida por um jovem encenador que ainda tem tudo para aprender, tornando este espectáculo mais rico, precisamente porque resulta de um intercâmbio cultural que deve continuar neste e noutros sentidos.

Devo dizer igualmente que foi para mim um enorme prazer trabalhar durante dois meses com este grupo magnífico de mulheres. Numa altura em que três das nossas mais conhecidas actrizes saem de Cabo Verde (duas delas para uma formação de onze meses na área do Teatro), é um enorme agrado confirmar que este “ninho” de actores e actrizes em que se está a transformar o Centro Cultural Português do Mindelo, vai dar a conhecer ao público mais uma série de caras novas, de todas as idades, todas mulheres, com um amor insuperável pelas artes cénicas e uma vontade enorme de continuar a trabalhar para o melhoramento do nosso teatro. Donas de casa, operárias, reformadas ou estudantes, foi com uma enorme coragem e muito talento que conseguiram tornar realidade este sonho de produzir uma versão crioula de “A Casa de Bernarda Alba”, uma peça onde o que marca na alma de quem construiu este espectáculo é o pranto doce e triste das mulheres abandonadas.

Novembro 97 / João Branco

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