À Espera da Chuva

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Corria o ano 2002, e o nosso grupo lança-se numa enorme aventura. Com a peça "À Espera da Chuva" não só se evocou o grande dramaturgo Samuel Beckett, como se colocou em palco dois actores - Ducha Faria e Jorge Santos - a falar dois crioulos "rurais" e totalmente distintos: o crioulo de Santiago e o de Santão Antão. Vamos recordar.


Sobre a peça

A inevitabilidade mítica da espera
(Texto inserido no programa da peça «À Espera da Chuva»)

Eis um projecto teatral várias vezes adiado que vê finalmente a luz do dia. Numa peça que fala essencialmente da espera, foi precisamente isso que fizemos: esperar que chegasse o momento certo para dar vida a este magnífico texto dramatúrgico. Desde que tomamos conhecimento de uma peça de Beckett chamada “À Espera de Godot”, que era muito forte o desejo de concretizar uma adaptação crioula desse texto, um dos mais marcantes da dramaturgia contemporânea.

A imagem de duas pessoas num campo deserto, praticamente no meio do nada, à espera de algo ou alguém, sempre foi ligada a essa inevitabilidade que acompanha o mundo rural cabo-verdiano desde os tempos mais remotos, de semear e esperar por uma dávida do céu. A primeira versão da adaptação agora apresentada foi feita em plena viagem de avião Sal – Lisboa, já lá vão alguns anos e nunca esse percurso foi concretizado de forma tão prazenteira. Estava lá tudo, nas palavras geniais do dramaturgo. Quando se pensa na imagem de dois cabo-verdianos à espera de alguma coisa, é inevitavelmente, da chuva que nos lembramos. Entre uma peça e outra, este texto foi sendo guardado na gaveta, mas de vez em quando era ele que era transportado para a mesa do café, sempre com uma vontade crescente de dar vida a esses personagens de ninguém, retidos no meio do nada, simplesmente à espera. Entre esses vários prelúdios, um dia saiu na manchete de um dos semanários nacionais uma fotografia com três agricultores, de enxada na mão, olhando para o céu, sob o título: “À Espera da Azágua”. Foi o momento em que se tornou ainda mais premente e oportuna a decisão de levar a cabo esta encenação, num espectáculo que será tudo menos fácil e corriqueiro, que não terá o cunho popular e cómico de outros registros, mas que procura ir mais fundo da condição humana, de uma forma geral, e da cabo-verdianidade, em particular. Essa é também a magia dos textos universais, já o temos dito aquando de outras adaptações: a universalidade permite-nos reclamar o nosso pedaço, a nossa condição de possuidores de palavras escritas por criadores inatos em momentos de rara inspiração.

Esta montagem teve várias particularidades que gostaríamos de partilhar: em primeiro lugar o trabalho dos actores. Já se tinha referido em outras ocasiões que um dos problemas inerentes às grandes produções teatrais, envolvendo elencos numerosos e heterogéneos, é tornar o trabalho do actor menos visível, mais diluído no colectivo, o que não permite nem ao encenador nem ao actor que com ele trabalha uma abordagem mais profunda dos seus personagens. Nesses casos, o sucessivo desenrolar dos acontecimentos, a corrente imparável dos factos, ganham primazia sobre a caracterização psicológica dos personagens. Aqui não há nada disso, porque estamos perante um estranho enredo em que nada acontece. Duas pessoas, que vivem juntas à um tempo interminável, estão algures, num lugar deserto e devorado pela seca, à espera, simplesmente. Mais nada. Além disso, é o vazio. Resta-nos aqueles dois seres humanos, colocados perante uma situação considerada absurda, mas que tem ligações concretas com a nossa realidade de todos os dias, principalmente se pensarmos no mundo rural. Nesta ordem de idéias, o trabalho dos actores, é um trabalho sem rede, sem defesas, muito mais dificultado, porque são eles o cerne e o centro de uma estória onde, aparentemente, nada se passa. E o Jorge e a Ducha, que aceitaram com muita coragem abraçar este projecto responderam à altura, com dedicação, empenho e talento.

Em seguida, temos a questão linguística, que será um dos pontos mais polémicos e marcantes desta produção. Inicialmente, haveria duas hipóteses: o português ou o crioulo de S. Vicente. Acabamos por optar por uma terceira via que nos pareceu bem mais ajustada ao contexto que queríamos dar a esta peça, mas que nos colocou perante um desafio incomensurável: o homem fala crioulo de Santiago, a mulher responde com o crioulo de Santo Antão. Houve todo um imenso trabalho de investigação, de tradução, de dicção, de pronúncias e nuances dos diferentes crioulos que tivemos que abraçar, com auxílio de naturais dessas duas ilhas. E dessa forma, na nossa opinião, a peça ganha uma outra dimensão: em primeiro lugar porque fixa o contexto dos personagens num universo marcadamente rural, em segundo, porque dá uma maior amplitude ao drama nacional, que se repete todos os anos, materializado no facto de muitos e muitos camponeses cabo-verdianos, com enorme esforço, se dedicarem a uma sementeira, cujo resultado depende dos caprichos de uma natureza, que na maioria dos casos, se tem revelado madrasta.

Tudo o resto se deve a uma colaboração solidária e criativa de toda a equipa: a música tocada ao vivo por dois jovens e talentosos executantes, o guarda-roupa concebido e desenhado especialmente para o espectáculo, uma linha plástica centrada nas diferentes côres de uma terra pouco acostumada em sentir o doce e fresco sabor da água, os castanhos, o deserto, e como não podia deixar de ser, num canto, uma árvore que resiste, e que em Cabo Verde não poderia ser outra que não uma acácia.
Foi a pensar nessa boa gente do campo que concretizamos esta peça. E aprendemos que a difícil capacidade de esperar, de manter a esperança em dias melhores, é também e sobretudo, sinónimo de sabedoria.

João Branco – Março 2002

À Espera da Chuva

Ficha Artística

Encenação, adaptação dramatúrgica e cenografia
João Branco
Direcção Musical e Músicas originais
Vamar Martins
Desenho de Luzes
Anselmo Fortes
Som
Fonseca Soares
Figurinos e adereços
Elisabete Gonçalves

Consultores de crioulo (Santo Antão e Santiago)
Arlindo Lopes, Adilson Semedo, Arminda Lima e Marlene Pires

Interpretação
Jorge Spencer e Maria da Luz Faria

Músicos Convidados
Dani Monteiro / “Toja” (clarinete)
Vamar Martins (viola)

Apresentação
Dia 29, 30 e 31 de Março de 2002, no Centro Cultural do Mindelo
- Participação no Março – Mês do Teatro 2002
Dia 05 de Abril de 2002, no Auditório Nacional, cidade da Praia
- II Congresso de Quadros da Diáspora

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