"O Doido e a Morte" em estreia

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Ao iniciar a pesquisa para escrever o presente texto, descobri algo de surpreendente: o autor desta peça nasceu e morreu precisamente no mesmo ano do grande poeta e escritor cabo-verdiano Eugénio Tavares, homenageado pelo nosso grupo de teatro há precisamente um ano. Não passa de uma coincidência, mas fiquei radiante com a descoberta, vá-se lá saber porquê!

Quando li a peça pela primeira vez, fiquei muito interessado. E o entusiasmo foi crescendo com os ensaios, porque dito pelos actores o texto é ainda mais imponente. É de uma qualidade imensa e ao mesmo tempo cruel, seco e implacável, perfeitamente adaptável aos tempos modernos, aliás como a própria situação criada comprova, dada a sua triste actualidade.

Basicamente, a situação é muito simples: dois personagens, um poderoso, porque é Governador, calmamente instalado no seu gabinete climatizado, o outro, que entra com uma bomba super potente, anunciando com a maior calma do mundo que passados alguns minutos, irá tudo pelos ares. Traz consigo, diz ele, a morte debaixo do braço.

A estreia desta peça em Portugal, fará no próximo dia 01 de Março oitenta anos exactos, foi marcada por deliciosas intrigas de bastidores, que visavam suprimir a última fala, a fim de «não ofender a decência dos ouvidos das senhoras». Com efeito, o pano chegou a cair antes do final mas, por exigência do intérprete, voltou a subir para que a réplica em causa pudesse então ser dita, conferindo, assim, mais impacto àquilo que, puritanamente, se queria censurar…

A peça foi classificada pelo teatrólogo Luiz Francisco Rebello como «a mais singular e genial obra dramática do século XX português». Este autor refere ainda que Raul Brandão sentia-se atraído pelo teatro e pelo «prestígio enorme» que, nas suas palavras, «quatro tábuas, dois ou três farrapos de lona a cheirarem a tinta exercem sobre todos os homens de imaginação». Estamos perante uma obra que deixa transparecer um sentimento do absurdo ligado ao grotesco gerado pela discrepância entre a realidade e o sonho, entre a grandeza e a abjecção, entre a morte que é a vida e o sonho da eternidade.

Considerada uma pérola da história da dramaturgia portuguesa – e em língua portuguesa - «O Doido e a Morte», é uma farsa existencial, onde talvez faça sentido falar de expressionismo, por se tratar da revolta de um indivíduo perante a crueldade, a incongruência, a abjecção do mundo moderno e porque a obra de Raul Brandão está cheia de «gritos» que fazem com que tenhamos sempre presente o quadro de Munsch, «O Grito».

A encenação inspira-se, precisamente, nesta ideia e neste paradigma. Daí a opção pela utilização das máscaras, o estilo de interpretação, os próprios adereços, figurinos, som e luz. Digamos que toda a plástica da peça, seja ela interpretativa, sonora ou visual, é o retrato de um imenso grito que pode servir, senão para acordar deste estranho sonho que é o presente, pelo menos para nos tornar mais alertas no futuro.

Finalmente, dedico este espectáculo aos actores, pelo esforço, dedicação e pelo enorme desafio que, com trabalho e talento, penso terem sabido ultrapassar.

João Branco

1 comentários:

Kamia disse...

Só hoje descobri este blog que vem enriquecer a comunidade de blogues caboverdianos não só em quantidade como em qualidade.
Parabéns pelo blog e parabéns por 13 anos de excelente trabalho.